O STF alimenta mais uma vez a fantasia de golpe no Brasil

(J. R. Guzzo, publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 20 de novembro de 2024)

Uma das novidades da vida cotidiana no Brasil de hoje é o dever quase-legal de acreditar num absurdo por dia. São coisas que dizem com a cara, a formalidade e a segurança de um texto do Diário Oficial, e que não fazem nenhum nexo por qualquer tipo de raciocínio lógico — mas nas quais o cidadão é obrigado a acreditar, sem perguntar nada, sob pena de incidir nos delitos de “fascismo”, “nazismo”, “ato contra a democracia”, “extrema direita”, “golpismo” e “negacionismo”

É a criminalização do ato de pensar — por decisão do STF, da Polícia Federal e da porção da mídia que reproduz mecanicamente o que ambos lhes entregam para publicar. Você tem de acreditar, por exemplo, que um tubo de batom é “substância inflamável”; Alexandre de Moraes escreveu isso. Houve uma tentativa de golpe armado, com estilingues e bolas de gude, em 8 de janeiro de 2023. O mesmo ministro diz que foi agredido no aeroporto de Roma, mas o STF mantém em sigilo há mais de um ano as imagens gravadas do episódio.

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Esse “crê ou morre”, como no Islã, é do tipo pega geral. Em política é obrigatório dizer que o presidente Lula não perdeu nada nas eleições municipais de 2024 — o PT ficou com menos de 5% das prefeituras e o candidato de Lula foi incinerado em São Paulo, mas isso é porque ele “se preservou”. Em economia está decidido que um crescimento de 3% ao ano, igual ao do último ano do governo anterior, é “robusto”. Em conduta, a mulher do presidente dirige palavras de baixo calão a Elon Musk, mas é ele quem propaga o “discurso do ódio”.

A conferência do G20 ora encerrada no Rio de Janeiro, e que deveria ser a obra prima da política externa de Lula, acabou com um dos comunicados mais indigentes na história do grupo — uma sopa de palavras tão aguada, e tão inútil, que ninguém achou motivo para vetar nada no texto. Mas a alternativa era não sair nem isso, o que parece ter deixado o Itamaraty em princípio de pânico. Como, no fim, arrumou-se alguma coisa para colocar no papel, a verdade oficial é que a diplomacia brasileira deu um show.

O STF proibiu perguntas no país

A última obrigação expedida pelo ministro Moraes e a PF estabelece que se leve a sério uma “Operação Punhal Verde-Amarelo” — um segundo golpe de Estado de Jair Bolsonaro contra Lula, ou a continuação do primeiro, que já está sendo investigado há quase dois anos, por outros meios. Não parece claro se é uma coisa ou outra, mas a principal novidade é que Lula, nesta versão, seria envenenado. Moraes, que antes seria executado na estrada que vai de Brasília à Goiânia, continua da lista de assassinatos dos golpistas. Iam matar, também, Geraldo Alckmin — coisa que jamais passou pela cabeça de ninguém até hoje.

No golpe como ele era até agora, segundo Moraes e a polícia, a prova mãe era a “delação premiada” do coronel Cid e as suas “minutas do golpe”. A delação, aparentemente, não está valendo mais; nem o ministro e nem a PF estão satisfeitos com ela. As “minutas” não serviriam como prova nem num júri de centro acadêmico. Se o ministro Toffoli decidiu que confissões voluntárias de corrupção ativa são “imprestáveis”, por que as minutas do coronel seriam prestáveis? As provas da polícia, agora, são “conversas entre militares”.

O que a PF mostrou para os jornalistas até agora é uma maçaroca de diálogos idiotas e de orações sem verbo, sujeito, predicado, começo, fim e, sobretudo, sem pé nem cabeça — algo no nível do “quem tomar vacina pode virar jacaré” e outros grandes momentos do governo Bolsonaro. Como iriam envenenar Lula? Com formicida? Não está claro quantos militares tomariam parte no golpe. “Já temos uns vinte”, diz um dos denunciados pela PF. E os outros 220 mil homens que estão no efetivo do Exército? A verba total para financiar o golpe era de R$ 100 mil, diz a polícia.

Nem o ministro Moraes e nem a PF demonstraram que essas conversas e desejos formam um plano coerente de golpe, e menos ainda de tentativa real de golpe. Talvez sejam o que se chamam de “atos preparatórios” do desejo de cometer um crime, se ficar provado que conseguiriam mesmo preparar alguma coisa. Mas “atos preparatórios”, na lei brasileira, não são nada. Não foi demonstrada, menos ainda, qual poderia ter sido a participação do maior suspeito da PF e de Moraes nesse golpe — Bolsonaro.

Não há nenhuma declaração gravada de algo que ele tenha dito, ou algum papel assinado, ou uma mensagem de WhatsApp. Tudo o que existe, segundo a PF, é gente falando a respeito de Bolsonaro — e principalmente a respeito do que ele não disse. Mais do que qualquer outra coisa, talvez, você está intimado a considerar que o ex-presidente é o grande culpado por trás disso tudo, só que não está preso. Se o ministro e a polícia estão certos de que o responsável é Bolsonaro, ou gatos gordos como o general Braga, por que eles estão soltos?

A incompetência das investigações chega ao ponto de trabalharem num caso durante dois anos e não levantarem prova alguma que fique de pé? Não há nada, pelo menos, que o STF tenha considerado suficiente até agora para prender Bolsonaro. Caso contrário, é óbvio que ele estaria na cadeia, não é mesmo? São dúvidas formalmente proibidas para o cidadão brasileiro. A democracia recivilizada do Brasil estabeleceu que é ilegal perguntar.

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